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Sobre o filme 'São Jorge', e contextos externos dramáticos que criam um plano existencial de tal modo inclinado que o colapso fatal é eminente



O filme português São Jorge (realização Marco Martins e argumento deste com Ricardo Adolfo), narra um drama social urbano, situado em Lisboa e que remete para o embate social que a crise e resgate financeiro de Portugal no ano de 2011 teve nas finanças das famílias e empresários. Jorge (por Nuno Lopes) é um boxeador contrariado, um pai frustrado, e um cidadão endividado a ponto de não conseguir pagar a tempo e horas a pensão de alimentos à sua companheira brasileira - Susana (por Mariana Nunes) mãe do seu filho, e com quem não coabita. Susana pondera regressar ao Brasil devido ao sufoco financeiro do que aufere a realizar limpezas. Jorge aceita ir levando sovas no ringue de boxe para juntar algum dinheiro.

A necessidade coloca Jorge a trabalhar no polémico ramo da cobrança coerciva de dívidas. Espicaçado quanto à necessidade de fazer uso da força, Jorge induz um suicídio de um devedor e isso aclara-lhe a visão quanto ao que deve fazer para reequilibrar a sua vida. O filme reveste-se de fealdade, seja nos ambientes exteriores (mato e becos urbanos), nos interiores (habitações ou locais envelhecidas ou inacabados de construção), seja na abundância de violência física e verbal. A centelha de beleza do filme está no amor que faz Jorge querer reunir o núcleo familiar e proporcionar algum conforto à companheira e ao filho. 

Como ensinamento extratável da obra, São Jorge contraria a máxima de que a vida é mole para quem é duro, mostrando que conjunturas há em que a vida é muito dura para quem duro é. Nem tudo depende de nós, e há contextos externos que criam um plano existencial de tal modo inclinado que todo os esforço que se faça é ainda assim insuficiente para suster um colapso fatal eminente.
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Sobre não ser possível fazer omeletes sem ovos quando o motivo é não se dever colocar os ovos todos na mesma cesta

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Encontrando-me no rescaldo da época festiva anual que é marcadamente ovípara no imaginário, convoco para este texto dois preceitos afins com a linha temática, a de não se dever "colocar os ovos todos na mesma cesta" e a de "não ser possível fazer omeletes sem ovos".

Quer-me parecer que as duas ideias não são mutuamente exclusivas mas são, pelo menos, potencialmente conflituantes. É que se por prudência retirarmos recursos (dinheiro, atenção, emoções, tempo) de um dado tema (ou de um conjunto deles), é muito provável que possamos vir a concluir que com os parcos recursos àquele(es) alocados não se proporcionou sermos capazes de atingir os resultados desejados.

Torna-se pertinente perguntar se o nosso destino inexorável é produzir omeletes. A omelete pressupõe que o ingrediente principal seja o ovo, mas se não os alocamos em abundância, mais certo é que o ovo não mereça ou deva ter a importância que o produto omelete lhe reserva. Com poucos ovos conseguem-se fazer bolos, panados, saladas, molhos, e esses são também itens confeccionáveis de insuspeita utilidade e qualidade nutricional.

Cabe-nos discorrer e ter controlo sobre as opções de confecção que admitimos realizar nos vários assuntos para os quais a vida convoca. Não precisamos de chorar automaticamente a respeito da recorrente falta de ovos, nem ter de apostar demasiados deles em frentes que se afigurem reconhecidamente arriscadas ou manifestamente desconhecidas. Há vida para lá das omeletes, e portanto uma saída possível para cada assunto é desconstruir-lhe os pressupostos (ou dogmas) que alimentam a frustração que julgamos sentir sobre o que são, afinal, os resultados desejados e os meios confeccionáveis para os alcançar.

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Efígies de substância (2024.2): a gestão do afastamento físico pela interrupção da coabitação é o grande teste do algodão sobre o valor que damos às pessoas ao nosso em torno


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Efígies de substância visa estimular o pensamento e reflexão pela força do génio de cartoonistas capazes de surpreender e deliciar com as suas criações.

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Sobre o filme 'Uma Boa Pessoa' (2023), e um drama intergeracional em torno de dependências químicas e de contextos sociais que propulsionam o consumo abusivo de substâncias

O filme que dá pelo título de 'Uma Boa Pessoa' - realizado e escrito por Zach Braff - tem uma pungente trama que orbita sobre um problema global de grande dramatismo, as dependências químicas, mas fá-lo sob o enquadramento estado-unidense. Centralizando a ação na figura do avô Daniel (personificado pelo aclamado Morgan Freeman) e da sua ex-nora Allison (brilhantemente interpretada por Florence Pugh), a história mostra como os vícios químicos tanto podem advir de heranças intergeracionais (genéticas ou sociais), como também de inesperados incidentes de vida cujo desfecho dramático propulsiona a entrada e agudização de quadros de consumo abusivo de substâncias.

O filme tem o condão de expor a evolução das substâncias da moda nos EUA, mostrando o álcool como uma substância mais antiga (old school) mas ubíqua, o ansiolítico alprazolam (ex.: Xanax) como uma opção mais conotada com a meia idade, e caracterizando os opiáceos enquanto droga da moda na atualidade, nomeadamente a oxicodona. Esta evolução cultural é bem evidenciada na história pelo alargamento do âmbito de uma associação de alcoólicos anónimos para mais tipos de dependências - frequentados na história quer por Daniel como por Allison, mas por dependências muito diferentes. 

Sob alçada de uma família na qual um acidente de viação causa duas fatalidades, a disrupção de um jovem casal, e força a realocação de um avô e neta ao papel disfuncional de 'pai' e 'filha', a história enfatiza muito bem o desajuste de compreensão intergeracional, traduzido por dificuldades de comunicação e entendimento mútuo de realidades, e materializado na historia em temas como pílula anticoncecional, iniciação da vida sexual, vida social, e particularidades da comunicação passar também por plataformas digitais.

Em suma, estou em crer que não foi dado o devido crédito aos méritos de 'Uma Boa Pessoa', esperando estar a contribuir para compensar o que considero ser uma invisibilidade injusta numa história tão meritória, pertinente e realista.

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Sobre o livro 'Debaixo de Algum Céu', (Nuno Camarneiro), e uma boa história de baralhar e redistribuir as vidas dos seus personagens, encontrando-lhes soluções para problemas anteriormente vividos


Apartment House - Gerd Arntz (1927)


Quando me decidi à leitura de 'Debaixo de Algum Céu', do português Nuno Camarneiro, dei por mim desconfiado de algum equívoco, pois nem sempre os prémios (literários) refletem meritocracia.  Porém, esta desconfiança mesclada de preconceito - até porque conhecia alguma coisa da vida deste escritor - começou a ser quebrada logo quando li os aclamados nomes que formaram o painel decisor do prémio. Ainda sem ler o livro, custava-me a crer que um livro possa enganar nomes tão versados na matéria.

O livro, como concluí mais tarde, não precisa do prémio para justificar a sua existência, vale pela convincente e lúcida proposta de diálogo com o leitor, narrando vidas normais dos habitantes de um prédio à beira-mar plantado, junto a um farol, durante um período de poucos dias entre o período de Natal e a passagem do ano.

Pela abundância e variedade dos personagens colecionados na história, Camarneiro consegue fazer a narrativa saltitar entre núcleos familiares ou pessoas a existir sozinhas sob a memória deles, e permeia esse jogo com capítulos onde um personagem ou o narrador sublinham e se demoram com a sua perspetiva individual sobre ocorrências narradas, estados psíquicos vividos em associação à ação da história, ou como eixos caracterizadores das pessoas que são.

'Debaixo de Algum Céu' poderia muito bem ter-se chamado "Na Orla de Algum Mar", pois o mar é, mais do que o céu, o meio que liga várias das imagens e vidas dos personagens da história. Por ser sobejamente variegado apesar do seu sucinto tamanho, a leitura deste livro é ágil, e a impressão final é a de que também o leitor pertence ao prédio onde tudo acontece, e que também o leitor se inscreve nas efemérides por lá vividas. Sem ser dotado de uma moral protuberante a coroar toda a história, o mérito de Camarneiro é baralhar e redistribuir as vidas dos seus personagens, encontrando-lhes soluções para problemas anteriormente vividos, soluções essas que assentam como uma nova maré no momento temporal do ano novo, onde por norma nos deixamos fazer brotar novas resoluções que alterem ou deem cumprimento ao que de menos bom ou desejável se reconhece do ciclo temporal anterior.

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Álbum do mês (03/2024): 'Love and its opposite' (Tracey Thorn, 2010)

 

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Sobre a pronta suspensão de contas nas redes sociais ao arrepio da presunção de inocência, e os perigos de nos refastelarmos em plataformas privadas e multinacionais de comunicação

Resurección / Resurrection - Alicia Leal (2021)


Fui surpreendido recentemente por uma suspensão da minha conta nas redes sociais, por motivos ainda por apurar, e com noventa dias para poder apelar contra a suspensão. Volvida uma semana sem acesso a mais do que uma dessas redes - plataformas detidas por um mesmo dono - dou comigo atónito relativamente à facilidade com que nos pusemos todos nas mãos de grupos privados para pode socializar no meio digital. Não vou demonizá-los só porque me encontro lesado, até porque suspeito que me tenham suspendido a conta ao abrigo de uma qualquer regra protetora do bem comum, mas não consigo deixar de pensar que grupo privado algum deveria ser capaz de neutralizar a atividade de um cidadão sem que tenha provas concretas de que este é culpado por alguma coisa.

É que contrariamente às regras da justiça na república portuguesa, a plataforma não partiu de uma presunção de inocência. Ela prende (suspende a conta) e pede ao envolvido que se justifique e apele para que a normalidade possa ser recuperada. É esta forma de proceder aquilo que me perturba mais no caso. Não há uma explicação objetiva, há um remeter para termos e condições gerais demasiado amplos quanto a possibilidades de infração, como quem alega que um cidadão passe a estar detido por violar o código penal, sem concretizar que ponto do vasto conjunto de possibilidades está efetivamente a motivar a ação. Acresce ainda outro facto perverso: a plataforma facilita (e sugere) a que o utilizador descarregue todos os ficheiros que estavam associados à sua conta, o que é sem si uma presunção de despedida em definitivo, ou seja, de que a decisão tomada presume mais do que suspender até que se esclareçam as coisas, presume, com caráter definitivo, cancelar, expelir, cercear, barrar a minha existência, sob aquele perfil, nas redes sociais tuteladas por essa entidade privada.

Não podendo antever por ora o que sucederá a este caso, e reservando-me o direito de poder não tentar regressar a estas plataformas caso venha a concluir que o ato foi iníquo, deixo aqui esta nota pública para o perigo de nos deixarmos agrilhoar socialmente a canais de comunicação que prometem facilidades mas que reivindicam para si formas de tratamento dos cidadãos pouco consentâneas com os níveis de modernidade que apregoam pelo lado da sofisticação tecnológica. Uma mina de fragmentação que só quando pisada revela a natureza do solo durante tanto tempo percorrido sob uma infundada presunção de segurança e liberdade.

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Sobre os improducentes palco, holofotes e plateia da internet para quem dela idealiza(va) um fórum democrático e cortês de discussão

Whistestop Speech - Jeanine Michna-Bales (2018)


Embora a internet ofereça palco, holofotes e plateia para todos os que querem ter algo a comunicar ao mundo, estas liberdades concedidas pela ligação à velocidade da luz entre si de múltiplas máquinas e seus utilizadores encoraja o homem a fazer algo que ele consideraria mais contraproducente empreender no mundo físico. Aquele que chega a um grande fórum digital, seja uma rede social, uma caixa de comentários de um jornal, ou a um qualquer canal de generalidades e debita um pensamento, um protesto, um louvor, uma tomada de posição, aceita realizar algo que no mundo físico não se vê acontecer com a mesma abundância e reincidência.

Imagine-se uma estação de comboios apinhada, imagine-se um quiosque no dia de jackpot de totolotarias, imagine-se uma praça de alimentação de um centro comercial de um dia de chuva. E agora imagine-se a comparecer num destes locais e a proferir, em voz alta, os mesmos pensamentos, protestos, louvores, ou  tomadas de posição que mais facilmente já propalou ou vê propalar pela internet. Os transeuntes olhariam para si, as expressões das pessoas não o deixariam indiferente, e notaria também a profunda desatenção e desprezo votada pela maioria dos passantes. A sua voz, que atentava ao início alcançar o "mundo" lá fora, a opinião pública, acabaria por projetar-se e impactar muito poucas pessoas daquele espaço físico, não alcançando sequer as ruas mais próximas. Seria assim tão motivante e inadiável comunicar ao mundo essas ideias e mensagens?

O confinamento ao conforto do nosso espaço físico e a uma privacidade anonimizante aquando da experiência de comunicação empreendida via internet cria uma impressão de facilidade no emitir conteúdos subjetivos para concidadãos desconhecidos. Concidadãos que não estão minimamente comprometidos com a ousadia dessa comunicação, e com processos de empatia que os faça respeitar quem fala. Tenho-me convencido de que a ideia platónica da internet como fórum  democrático de discussão não colhe, pelo mesmo motivo que nunca foi possível fazer debates organizados e respeitosos no espaço público. Ainda para mais tudo decorre na ausência de um moderador. As conversas são rapidamente tomadas em ardis sectários dominados por pessoas que agridem e descredibilizam gratuitamente, e as conversas são também elas próprias cheias de irrazoabilidades e confusão total entre a mensagem e o mensageiro, entre o discordar e o não ter direito a falar.

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Sobre as 'wake up calls' na vida, e o dilema de preferir recebê-las e geri-las em conformidade, ou ignorá-las e viver com intuição e fé o que dá à costa dos sentidos

The nudge, the touch, and a whisper - Jason Mowry (2021)


No hotel da vida, preferes receber wake up calls e ser forçado a conviver com essa tomada de consciência, ou consideras que melhor mesmo é evitar sobressaltos e gerir com intuição e fé o que dá à costa dos sentidos? O serviço de wake up call dos hotéis deve, por estes dias, ter sido exterminado pela autonomia de programar unilateralmente alarmes com um indicador e a palma da mão a suster o versátil dispositivo que o permite. Mas o seu conceito não deverá desaparecer do nosso imaginário.

O referido serviço nunca ultrapassou o âmbito de alertar para compromissos temporais à escala do dia, em que o despertar a horas era primordial. A necessidade continua a existir, até porque o sono é manifestamente um território de inimputabilidade para o caráter do homem. Mas o meu intuito aqui procura um alcance mais longo, e a alusão ao hotel da vida é precisamente para que se pense nos avisos que esta nos dá sobre coisas que se estão/poderão estar a passar ou irão/poderão passar-se caso nada em contrário seja feito.

O termo de wake up call evoluiu para substantivar o conceito de receber um alerta sobre um problema, perigo ou necessidade. Alargado ao oceano da vida, passamos os dias a tentar inteligir sinais que possam configurar wake up calls, mas também a rebater e descredibilizar outros que, de modo inconveniente para nós, também o pudessem ser num sentido que consideramos desvantajoso.

Isto decorre de que, contrariamente à versão original, humano algum consegue programar integralmente a sua vida para wake up calls, embora a tecnologia, com os seus sensores e tratamento de resultados, consigam cada vez mais cobrir componentes específicos outrora sem qualquer tipo de diagnóstico. Que o digam temas como a saúde, finanças, meteorologia, transportes, etc.

A pergunta inicial carece então de uma posição: é preferível receber essas chamadas que nos acordam para a vida ou não as receber? Eu, que prefiro por regra ter sempre os dados do meu lado, prefiro recebê-las, Não giro a vida com fé, mas o mesmo não posso dizer da intuição. Esta combinação leva-me a filtrar as wake up calls que recebo, triando-as no que toca à preocupação que lhes vou - ou não - devotar. Sei que elas estão lá, mas uso as minhas costas largas para gerir dissabores de ter de manter passos firmes apesar da consciência acometer para a memória desses avisos.

À falta de outros mecanismos, as wake up calls diretas à nossa central de consciência são o grande motor do posicionamento ou reposicionamento, devendo por isso ser procuradas, estimadas, respeitadas e geridas. Seja porque refletem a máxima do onde há fumo há fogo, seja porque por vezes o fumo é só um palito de incenso a perfumar de modo inconsequente a nossa sala interna de controlo de operações.

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